quinta-feira, 26 de junho de 2014

Clarice Lispector e a Filosofia (Parte 1 de 3)

Clarice Lispector foi uma escritora do século XX que despertou e ainda desperta a paixão em cada um que a lê pela primeira vez.  Ou se ama, ou se odeia Clarice. Essa é a minha certeza.   Sua importância para a literatura pode ser descrita como a Kafka da ficção latino-americana como um renomado tradutor americano de Gabriel Garcia Márquez, Jorge Amado, Mario Vargas Llosa e da própria Clarice disse, chamado Gregory Barbosa. Guimarães Rosa respondeu quando perguntado sobre ela: “Clarice, eu não leio você para a literatura, mas para a vida”.
            Muitos já se debruçaram sobre possibilidade de unir Clarice e a Filosofia. Encontramos dissertações de mestrado, artigos científicos e até tentativas de diálogos entre ela e grandes nomes da filosofia como: Martin Heidegger, Deleuze e Walter Benjamim.  
            Nossa tentativa nesse artigo não foge desse principio. É percebido em seus textos o sentimento de espanto. E espantar-se é fazer filosofia. Na maioria dos contos escolhidos vê-se um personagem “distraído” com a vida, sem ver viva na vida e como um “acordar” – e aqui podemos utilizar o espantar – faz desse personagem uma nova pessoa, com novo olhar.
            Aristóteles, filósofo grego e uma das bases para toda a filosofia que nascera na Grécia, disse: “Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar”. Heidegger utilizando dessa citação trabalhará em seu texto: O que é a filosofia?  (Qu’est-ce que la philosophie?) claramente esse conceito aristotélico dizendo na mesma consonância que:

O espanto é, enquanto pathos, a arché da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo surge.  Mas este ‘de onde’ não é deixado para trás no surgir; antes, a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, o que impera. O páthos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mãos precede a operação do cirurgião. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior. (HEIDEGGER,1999,p.37).

            Os textos de Clarice Lispector claramente demonstram essa categoria da filosofia encontrada em Aristóteles e Heidegger. Seja o espanto de uma senhora que descobre que ainda possui desejo sexuais, seja uma dona de cada que voltando para a casa vê um cego e a partir desse “espanto” repensa a sua vida.
            O livro usado para essa determinada tarefa é uma reunião de 22 contos da autora escolhidos pelas mais diversas pessoas do meio artístico: atrizes, escritores, diretores de teatro e críticos de literatura intitulado Clarice na Cabeceira (2009).
            A primeira coisa que podemos notar antes mesmo de entrar no objetivo da reflexão é o tipo de literatura que Clarice desenvolve vendo no leitor um personagem e também um escritor, diz ela: “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor”.
            Teresa Monteiro – organizadora do livro – escolhe como primeiro conto o Ruído de Passos onde mostra uma senhora, com seus mais de oitenta anos, ainda possuindo desejo pelo prazer.
            Cândida Raposo que já perdera o marido e um filho não compreende como é possível sentir essa “falta de vergonha” com a idade tão avançada. Acaba recorrendo a um médico que naturalmente tenta responder as aflições daquela dona de casa.
            “– Não importa, minha senhora. É até morrer”.
            “– Mas isso é o inferno!”
            “– É a vida senhora Raposo”.
            Como é interessante ver na frase do médico como a vida caminha com o desejar, com a vontade de viver. Podemos talvez tirar a ideia de que viver é desejar e quem deseja vive. Aqueles que não possuem desejo pela vida logo a entregam e desaparecem. Santo Agostinho trabalha com a ideia de desejo utilizando para o conceito de amor. Para ele existe o amor como desejo, o amor ao próximo e o amor face a Deus. “Amar não é mais do que desejar (appetere) uma coisa por si mesma”.
            Só que no caso da dona Cândida não há mais o que desejar, ou seja, não existe mais tempo para sentir esses desejos, como se a morte começasse a dar sinais de vida logo no final de cada dia. Talvez na cabeça daquela senhora, que Clarice tão bem descreve em apenas duas paginas de conto, aquelas sensações, aqueles desejos, fossem realmente um inferno para ela que não aguardava mais nada da vida. A reação dessa senhora é como um espantar-se: “como a vida ainda me proporciona isso? Por que esses desejos se não tenho mais marido nem alguém que olhe para mim?” Essas perguntas convergem nas questões que ela levanta para seu médico:
            “– E o que eu faço? Ninguém me quer mais...”
            “O médico olhou-a com piedade.”
            “– Não há remédio, minha senhora”.
            “– E se eu pagasse?”
            “– Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade”.
       Talvez esse “pagar” que a senhora Cândida insinua, seja a contratação de um profissional sexual, mas o médico descarta essa alternativa devido a sua idade. Resumindo: ela possui o desejo, só que a idade não lhe da condição física para expurgar essa sensação.

   Ao final Cândida acaba se satisfazendo sozinha por complacência do médico, que entendeu isso como uma forma de “remédio” menos “inofensiva” para sua paciente e Clarice, meio que consola sua personagem dizendo: “Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a benção da morte”. diz Clarice ao final do conto.

(C O N T I N U A . . . )