sábado, 28 de junho de 2014

Clarice e a Filosofia (Parte 3 de 3)

(C O N T I N U A Ç Ã O)

Um segundo parágrafo encontrado nesse conto é ao seu final quando Clarice escreve:

Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio, ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros seja meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe. (LISPECTOR, 2009, p.24).

            Como é perceptível no início do parágrafo a questão da linguagem e como a linguagem é importante para a filosofia. Para ser alguém, segundo Clarice é necessário “disser e contar”. Danilo Marcondes na apresentação do seu livro: Textos básicos de linguagem, disse: “Talvez a linguagem seja uma dessas coisas, como diz Wittgenstein, que por nos serem mais familiares são as mais difíceis de entender. Por isso mesmo, desde o início da filosofia, na Grécia Antiga, a linguagem tem sido um de seus temas centrais” (MARCONDES, 2010, p.09).
            Clarice trabalha essa temática no fim do conto como se mostrasse o homem como Zóon Logikón, como um homem racional, podendo ser entendido esse logikón como logos, palavra, fala. Aristóteles trabalha com esse conceito de homem racional e mostra que fisiologicamente o ser humano possui o “corpo” para falar.   
            A passagem abaixo mostra a concepção aristotélica da linguagem, na medida em que aqui o filósofo se refere á língua (glossa) propriamente dita, demonstrando que a linguagem não depende apenas da mente, mas da própria fisiologia humana.

O uso dos lábios em todos os animais, exceto no homem, consiste em preservar e proteger os dentes, e por isso a forma específica pela qual os lábios são formados é relativa ao grau de beleza e de perfeição da natureza dos dentes. No homem, os lábios são macios e carnudos, capazes de se separarem. Seu propósito, como nos outros animais, é proteger os dentes, mas também têm o propósito mais elevado de contribuir, justamente com outras partes, para a faculdade humana da fala. Pois assim como a natureza fez a língua (glossa) humana diferente da dos outros animais, e como costuma ser sua prática, fez com que ela servisse a dois diferentes propósitos, o paladar e a fala, o mesmo se pode dizer em relação aos lábios, fazendo-os servir tanto para a fala quanto para a proteção dos dentes. (ARISTÓTELES, 659b28-660a14).

            Vemos como Aristóteles no início da filosofia na Grécia Antiga preocupa-se com a questão da linguagem e como seus posteriores também trabalharam esse tema. Podemos afirmar sem erro que a linguagem esta intimamente ligada com a filosofia e variáveis filósofos tomaram seu tema para analise.
            Ainda nesse parágrafo, um segundo momento é percebido como análise filosófica – não desconsiderando outros pontos que podem ser tratados filosoficamente, mas que nesse artigo não aparecerão. “Pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado”.  Fica claro, primeiramente, a questão de deixar a felicidade como secundaria para agradar aos outros. Segundo a autora, se irmos em busca de nossa felicidade acabaremos sozinhos.  Essa “barganha de ser amado” que ela trata no final do parágrafo, nada mais é do que uma troca de interesses. Barganhar é trocar algo que se tem por algo que não se tem.
            Outro conto de Clarice Lispector que utilizaremos como análise chama-se Amor e pode ser encontrado no livro Laços de Família. Nesse texto duas coisas ficam claras: a primeira o ato de espantar-se já trabalhado acima no texto e a segunda: a falta de coragem. Uma dona de casa, que percebe que não é ela que esta vivendo a vida, mas a vida que esta vivendo ela a partir do momento em que vê um cego mascando um chiclete no meio da rua. Essa senhora, sai atônita pela rua, enxergando pela primeira vez o que havia de sentido no seu dia a dia.
            Essa busca de sentido é talvez o sentimento que mais aflija o homem moderno. Ele não consegue pensar em viver uma vida onde nada do que ele fez e faça não tenha alguma repercussão. Alguns vão dizer que o sentido da vida é não ter sentido. E a dona de casa do conto de Clarice é impactada com essa pergunta que surge de uma imagem cotidiana e da queda e quebra de ovos que ela levava nas mãos.
            Essa quebra dos ovos pode ser entendida como a saída da personagem de sua proteção, do conforto, que existia no cotidiano, nessa banalidade do um dia após o outro. Quando os ovos se quebram, quebra também a fachada de vida feliz e com sentido que aquela mulher achava que possuía.
            O erro dela foi não possuir a coragem de lutar em busca de resposta sobre o sentido da vida. Preferiu voltar ao final da noite para sua casa, deitar ao lado de seu cotidiano marido e antes de dormir deixar uma lagrima de covardia correr pelo seu rosto.
            O último conto aqui estudado será A Bela e a Fera ou A ferida grande demais que pode ser encontrado na obra A Bela e a Fera, onde uma mulher muito rica se depara pela primeira vez com um mendigo pedindo dinheiro. O susto da milionária é tão grande que ela não sabe a quantia que deve entregar ao pedinte.  Fica claro no texto que no fundo todos são mendigos. Todos pedem, imploram por esmolas dos outros. Sejam elas: amor, confiança, carinho, atenção e até a mais pobre das esmolas que é o dinheiro.
            “– Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola, mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...”.
            Essas esmolas, que no fundo sempre são os dinheiros trocados, o troco de determinada coisa que compramos, é também a esmola que damos aos outros. Entregamos aos outros o que resta de nós. Nunca somos inteiros para as pessoas, mas pequenas frações que vão se dividindo cada vez mais num mundo moderno e acelerado.  Tem uma frase que ilustra muito a situação, não só da personagem de Clarice, mas da conjuntura atual: “Quem vive de migalhas, esta sempre com fome”. Ou seja, quem vive com um pouquinho de um, pouquinho de outro, esta sempre com necessidades. Pouco amor, pouco carinho, pouca atenção, nunca será atenção, nunca será carinho nem nunca será amor completo. O ser humano sempre terá necessidades enquanto a sua necessidade for pequena.

            Percebemos que Clarice além de ser uma grande escritora pode, com facilidade ser incorporada no estudo da filosofia. Não talvez como filósofa, mas com certeza como objeto de estudo da filosofia.


( F I M )